Monte do Pasto na Imprensa

Exportação de gado aproveita diplomacia económica

Na planície ligeiramente ondulada da Herdade do Trolho, na margem da estrada que liga Cuba ao Alvito, milhares de bovinos concentram-se em dezenas de parques de engorda espalhados pela paisagem. No Alentejo, é normal ver-se gado a pastar, mas o que se descobre nesta herdade da empresa Monte do Pasto nada tem que ver com a tradição — o que aí existe é uma poderosa máquina de engordar animais. A empresa, que passou dez anos no limiar da falência e que, em 2014, vendeu apenas 2000 bovinos, deu a volta à crise e no ano passado comercializou 30 mil; depois de sucessivos falhanços que geraram dívidas de 53 milhões de euros ao antigo BES, conseguiu no ano passado facturar 25 milhões e começou a amortizar dívidas. Num caso raro de recuperação, a Monte do Pasto transformou-se, em apenas dois anos, na maior fábrica de engorda de animais vivos do país (representa 10% do sector nacional e 1% da produção europeia).

Num sector no qual Portugal é deficitário e que ao logo dos anos se mantém num persistente estado de sobrevivência, a Monte do Pasto é um caso raro que técnicos da pecuária, especialistas no comércio externo ou responsáveis políticos pela Agricultura seguem com particular atenção. O que aconteceu? Clara Moura Guedes, a administradora da empresa, encolhe os ombros e larga: “Tivemos sorte.” Ao seu lado, um dos principais assessores da administração, Gonçalo Macedo, completa: “E soubemos agarrá-la.” A “sorte” de que Clara Moura Guedes fala aconteceu com a abertura do mercado de Israel à importação de animais vivos, em Maio de 2015. Mas a transformação de uma empresa moribunda numa organização capaz de explorar essa oportunidade reclama outras explicações.

Como muitas empresas do sector primário, a Monte do Pasto nasceu sob o signo da grandeza. Em 1981, um agricultor influente da zona de Beja, João Urbano, fundou a SAPJU (Sociedade Agro-Pecuária João Urbano) com o objectivo de criar uma unidade de produção com escala para resistir à invasão de carne estrangeira. Nada haveria de faltar para essa ambição: os fundos europeus abundavam; nove herdades com uma área de 3680 hectares propiciariam espaço para o pasto ou para parques de engorda; uma fábrica de rações haveria de verticalizar a produção; e o aluguer e posterior compra do matadouro de Beja garantiria à SAPJU o controlo do circuito da carne desde o prado até à saída para os talhos.

Um problema de foco

O problema principal da empresa era o seu foco. Ao tentar produzir para o mercado interno, entrou em competição com a carne importada de países como a Polónia ou a Roménia cujo preço era imbatível. “Nós não somos um país com muita sensibilidade para a qualidade: o que conta no mercado interno é fundamentalmente o preço”, nota Clara Moura Guedes. Quando a gestora é convidada pelo ainda BES a tomar conta dos destroços da SAPJU, havia já razões para acreditar que a dependência do mercado interno não tinha saída. Um estudo encomendado à AgroGés insistia ainda nesse caminho. “Ainda bem que não o seguimos”, diz com um sorriso a administradora.

No início do mandato de Clara Moura Guedes, o que era fundamental era tornar a empresa capaz de produzir e de competir. O momento para se discutir e aprovar o que se fazer, porém, não podia ser pior. No final de Julho de 2014, quando Clara Moura Guedes se preparava para assumir a gestão, o BES explode. “Num dia, conseguimos aprovar com o banco um financiamento de 14 milhões para reestruturar a empresa; na segunda-feira seguinte já não havia banco”, recorda a gestora. Só em Setembro, já com o Novo Banco, a equipa de Stock da Cunha aprovaria o plano e apenas em Novembro o processo ficaria pronto para arrancar.

Clara Moura Guedes defronta-se com muitos problemas e mais um: “Não percebia nada de vacas nem de pecuária.” Vinda da indústria dos lacticínios (fora administradora e accionista da Queijo Saloio), os bovinos eram para ela “como outra coisa qualquer”. A contratação de Gonçalo Macedo, um agrónomo com experiência na gestão pecuária, supriria essa necessidade. O resto, acreditava, seria conseguido com uma gestão eficiente e focada. É neste âmbito que se reconstroem cercas, se adquirem máquinas e animais, se aproveitam os fundos agrícolas da Europa e se fazem contratos de fornecimento com outros produtores pecuários da região.

Talvez nenhum destes esforços resultasse se a Monte do Pasto (como então se passou a chamar a extinta SAPJU) não fosse capaz de aproveitar uma oportunidade aberta pela diplomacia económica. Depois de quase dez anos de negociações, Portugal e Israel celebram um acordo comercial que abre as portas à exportação de animais vivos. Três meses depois do acordo, em Agosto de 2015, a Monte do Pasto junta-se à Raporal, uma empresa com base no Montijo, para a primeira exportação. Mas, de imediato, Clara Moura Guedes e Gonçalo Macedo fizeram as malas e voaram para Telavive. E autonomizaram-se da Raporal. Para sua sorte, dispunham de um trunfo inesperado: a qualidade dos animais que produziam permitia que até 95% da sua carne pudesse ser classificada como kosher (estado sanitário conforme à lei hebraica).

Firmados os primeiros contratos, era fundamental garantir volume de produção. Um barco para Israel transporta de cada vez cerca de 2400 animais, uma quantidade impossível de satisfazer pela maioria esmagadora das empresas nacionais. O espaço disponível, os investimentos em parques de engorda ou os contratos de fornecimento com 20 produtores da região foram as respostas encontradas para o desafio. A capacidade de engorda da Monte do Pasto ronda hoje os 12 mil animais em simultâneo. Para lá deste efectivo, a empresa dispõe ainda de 1400 vacas reprodutoras. Com este potencial, foi possível exportar no ano passado cerca de 30 mil animais para o Médio Oriente.

Manuel Carvalho in Público, 19 de Fevereiro 2017